Bom artigo no Valor sobre música e Internet. Como o acesso ao arquivo do jornal é restrito, mais uma vez vou fazer um serviço de utilidade pública, reproduzindo neste espaço as entrevistas e ponderações do Cadão Volpato. Para acessar o artigo original, com todas as imagens publicadas, clique aqui.

Os novos sons da banda larga
Por Cadão Volpato, para o Valor, de São Paulo
26/12/2008
Divulgação
A banda brasiliense Nancy, que tocou no mês passado em São Paulo como uma das vencedoras do HttpSom, concurso desenvolvido quase todo dentro da plataforma MySpace

Informação, entretenimento, consumo, trabalho, comunicação, sociabilidade: tudo isso cabe num mesmo pacote para quem é, gostaria de ser ou finge que é jovem. Tudo isso se encontra na internet. E de todas as áreas atingidas pelo furacão virtual, a música é a que parece fazer circular, com mais desenvoltura, aquilo que as pessoas experimentam na rede. “Já existe uma geração web”, diz a artista e professora de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Giselle Beiguelman. “Mas não é um fenômeno exclusivo da música. Repete-se na área de fotografia, vídeo e, conforme as tecnologias avançam, as bandas se alargam e os equipamentos se tornam mais baratos, promete alterar radicalmente as formas de circulação de cinema e televisão.”

Na música, no entanto, tudo muda com uma enorme velocidade. “Acho que isso é mais evidente na indústria musical porque esse é um assunto muito importante na vida de gente jovem, que tem bastante tempo para ouvir, falar e escrever sobre música”, observa João Paulo Gomes, da banda brasiliense Nancy, que tocou no mês passado em São Paulo como uma das vencedoras do HttpSom, um concurso desenvolvido quase todo dentro da plataforma MySpace – quase todo porque os músicos escolhidos no site saíram do mundo virtual para tocar ao vivo na cidade.

As grandes gravadoras assistem a mudanças gigantescas e contínuas em seu modelo de negócios. Donas da cena no passado, elas tentam mover os corpos pesados e estender os tentáculos nas mais diversas direções, para ver o que é possível apanhar. “O mundo da indústria era intocável”, diz o produtor musical Carlos Eduardo Miranda, um dos criadores do Trama Virtual, que, desde o fim do século passado, quebrava a cabeça com o negócio on-line. “Em 2002, começamos em fase experimental. Chamei os amigos para testar o software”, conta Miranda. “E de repente a coisa explodiu”. O grupo Cansei de Ser Sexy, que hoje é uma coqueluche mundial, surgiu nesses tempos mais bravios do site. Em termos mundiais, o caso dos ingleses do Arctic Monkeys também revela muito sobre o que significava partir de um pequeno posto virtual e chegar às grandes audiências. O Arctic, atualmente, não é nenhuma novidade (mesmo porque as novidades se renovam numa velocidade espantosa). Mas continua vendendo muitos discos e fazendo muitos shows.

Diante do compartilhamento de descobertas num universo em permanente expansão, o suporte CD é apenas mais um elemento na bagagem do artista. “As gravadoras estão se recompondo, pois o impacto no negócio delas foi enorme. Hoje, elas estão atuando em outros segmentos, como a promoção de shows, e se associando aos empresários dos artistas “, diz Haryston Oliveira, diretor de marketing do MySpace Brasil. “Acho que a internet ajuda muito na divulgação, muito mais do que prensar mil cópias de um disco”, diz Gomes, da banda Nancy. As gravadoras, então, precisam descobrir novos papéis. “Graças aos deuses virtuais nos livramos de amarras mercadológicas burras que travavam nosso crescimento e nosso avanço em todas as direções e públicos”, afirma o jornalista e DJ militante Lucio Ribeiro. “Hoje em dia é mais importante um blog de um menininho de Natal dizer o que é bom e o que vale a pena do que um release enganoso que chega ‘vendendo’ uma atração”, completa ele.

O desgarramento a que foram submetidos autores, intérpretes e músicos pelo furacão internet é “libertário” para o gaúcho Flu, outro dos premiados no HttpSom. “Todo mundo tem que se virar. Descobrir maneiras de sobreviver da arte é o grande enigma”, afirma. “Os artistas precisam usar essa liberdade para criar situações novas tanto na composição quanto na divulgação.”

O que não faltam são situações novas. Uma cantora como Mallu Magalhães, um fenômeno adolescente de 16 anos, saltou do MySpace para o colo da mídia numa questão de meses. Tudo começou com algumas postagens de sua vozinha miúda, afeita ao folk dylaniano. Daí para o computador atento de Lucio Ribeiro. E, por fim, num movimento de corrente que nenhum paquiderme da indústria conseguiu prever, lá estava a menina na televisão, mais exatamente no programa “Altas Horas”, de Serginho Groissman. O mais interessante é que tudo terminou em disco – ou CD – como nos velhos tempos, apenas invertendo o processo. Hoje, sozinha ou acompanhada do namorado Marcelo Camelo, ex-Los Hermanos, Mallu arranca gritos e lágrimas por onde passa. E olhe que ela trafega pelos mais diferentes ambientes. “Ela é total convergência de mídia”, filosofa Ribeiro. “Está no MySpace e na ‘Caras’. No ‘Ego!’ e na coluna da Mônica Bergamo. Toca em rádio indie e ao vivo no Na Mata Café.”

Por falar em Los Hermanos, o outro barbudo da banda, Rodrigo Amarante, também usou o MySpace para a divulgação de seu novo trabalho, uma parceria multinacional com o baterista dos Strokes, Fabrizio Moretti, de sangue brasileiro e língua inglesa, e Binki Shapiro, a namorada americana de Moretti. O trio postou na plataforma suas simpáticas e relaxadas canções, que misturam o universo praiano da Califórnia com batidas de reggae e ska, e lembram em muitos aspectos os dois universos onde foram criadas. Só depois veio o disco, que leva o mesmo nome da banda, Little Joy, e acaba de sair pelo selo Rough Trade, de reputação meio independente. De Denver, no Colorado, a Portland, no Oregon, eles tinham shows agendados até as portas do Natal, e isso só para fechar o ano.

Gomes e sua banda Nancy viveram também uma experiência internacional. A banda já existia no tempo da faculdade, mas as circunstâncias levaram Camila, a vocalista, e o líder, João Paulo Gomes, a se separar. Ele mudou para o Rio, ela foi fazer mestrado em Londres. “Percebemos que queríamos continuar a fazer música juntos mesmo com a distância e naturalmente começamos a trocar pedacinhos de novas composições”, conta. Ele gravava um pouco de guitarra no laptop e mandava por e-mail para Camila, que retornava com uma idéia de vocal. Quando ela anunciou que viria passar um tempo no Brasil, ele reconstituiu a banda, transformou os rascunhos em música de verdade e enviou-os de novo a Camila, que gravou os vocais em casa. Ela chegou para as gravações definitivas. E só então conheceu o outro guitarrista. Mas Gomes não acredita que o método tenha repercutido no tipo de música que eles fazem. “O esforço coletivo é sempre melhor”, diz o músico.

O jornalista Lucio Ribeiro cita outros exemplos de trabalho via internet. O primeiro tem a ver com o caso da banda Nancy. Stephanie Toth, uma garota paulista de 16 anos – uma Mallu Magalhães bem mais nervosa e indie – conheceu um guitarrista de Minas Gerais via internet, passou-lhe algumas músicas gravadas com voz e violão no computador e as recebeu de volta incrementadas com cordas e sonoridades extras, tudo devidamente postado no MySpace.

“Até pouco tempo, ela ainda não tinha visto o menino pessoalmente”, diz Ribeiro. A banda paulista Los Pirata, de certa carreira no cenário musical da cidade, fez um disco trocando idéias e gravações via internet com um produtor de um estúdio de médio porte em Washington. E, por fim, o rapper Jay-Z, ligado à grande indústria e gravando, portanto, da forma mais sofisticada possível, também acabou postando tudo no MySpace. “Você pode não tirar a melhor das qualidades sonoras da internet, mas uma garota, uma banda de médio porte e um rico superstar estão chegando ao mesmo fim do processo”, conclui o crítico. E muitos outros estão correndo atrás do prejuízo: Zezé Di Camargo & Luciano acabam de estrear seu perfil no MySpace, e a cantora Paula Toller anuncia o lançamento do novo álbum no seu endereço do site.

Resta saber até que ponto a boa confusão e a variedade de informações descarregadas pela rede podem ajudar na criação em si. Ou seja, até que ponto a internet transforma a produção dos artistas, já que a audiência parece bem transformada?

“Não se deve mais criar pensando em idolatrias e fortunas”, diz Flu, que conheceu a indústria fonográfica e seus áureos tempos nos anos 80, como guitarrista da banda gaúcha DeFalla. “Nunca foi tão fácil ouvir música. Nunca foi tão fácil criar música. Mas a coisa toda está tão esparramada que é necessário achar os buracos onde a arte tem valor. É preciso garantir a sobrevivência dos artistas.”

Para Giselle Beiguelman, ” é a internet que está mudando completamente a maneira de acessar a produção cultural como um todo. A grande guinada cultural está relacionada às redes sociais, entre as quais o MySpace é um exemplo, e às plataformas de compartilhamento como BitTorrents, e-mule e KazaA, que fermentam as nano-audiências temporárias”. Isso deve refletir na produção, num caminho de ida e volta. “Apesar da defesa de alguns artistas mais puristas”, diz Oliveira, do MySpace, “o álbum como uma obra perdeu valor. A velocidade atual do consumo e da variedade de opções criou um modelo em que as faixas individuais são as estrelas de consumo.” Para nano-audiências, faixas individuais.

“Não se faz nada para multidão”, alerta o veterano produtor Miranda. “O artista agora precisa fazer aquilo em que acredita. Tem que ser ainda mais dedicado à música. Não basta colocar na internet: tem que ir atrás. Sempre haverá alguém para se identificar com ele”, afirma. “O importante é produzir e postar”, completa Flu. “Assim vão se formando turmas de afinidade e começam as trocas de informação. E esta grande mistura tende a ser maravilhosa, tanto para os ouvintes internautas quanto para os artistas.”

O fato é que todos os dias aparecem coisas novas – só para ficar no terreno da música divulgada na rede. Quem quiser entender em que pé está a produção musical no mundo precisará navegar como um louco por infinitas possibilidades. O bom é que, nesta geléia geral em que se transformou o conhecimento na internet, sempre haverá um “curador” informal, alguém que se disponha, via blog ou site jornalístico, a guiar o desconhecido pela mão através das ramificações. “Pode ser um jornalista da ‘New Yorker’ em que você confia”, diz Lucio Ribeiro. “Ou então o blog do tal menino de Natal ou de um garoto de 17 anos, numa sala de aula, em que os colegas confiam. O filtro abriu geral.” Ele mesmo vai colhendo novidades nas inúmeras viagens que faz como DJ pelas profundezas do país. Em seu blog e nas viagens, também exerce o papel de “curador” virtual.

O que esta geração web tem nas mãos não é pouco. É um mundo em permanente transformação, mas que possibilita ações mais democráticas, ao gosto do freguês. Pelo menos por enquanto. Como diz Miranda, “acabou o ‘sou gênio, alguém tem que cuidar de mim”. O futuro virá com transformações ainda mais contundentes, na forma de convergências de mídia que já estão batendo em nossa porta, na mistura bastante bagunçada de computadores, celulares, sites jornalísticos e blogs, tudo ao mesmo tempo.

Todos os entrevistados desta reportagem, que têm entre 27 e 46 anos, baixam músicas na internet como a coisa mais natural do mundo. Uns, como João Paulo Gomes, não vêem a cor de um CD há muito tempo. Outros, como Flu, não têm achado muitas músicas boas para baixar, mas estão confiantes no futuro. Outros ainda, como Oliveira, do MySpace, continuam achando bandas novas. Ele descobriu três delas na última incursão que fez pela rede antes da entrevista (Breaking Benjamin, Godsmasck e The 69 Eyes, de quem você provavelmente nunca ouviu falar, mas poderá ouvir na próxima semana).

O futuro nunca esteve tão perto, tão aberto e tão musical.