Precisamos falar de uma outra história da arte nas escolas, capaz de dar conta de nossas matrizes indígenas, como a cerâmica Marajoara e Tapajônica. Não se trata de uma visão restauradora, de busca e valorização de nossas supostas origens. Mas de um alargamento do espectro cultural, com capacidade de absorver um legado estético múltiplo, plural e que não abstraia aquilo que nos pertence culturalmente.

Visitei os galpões dos ceramistas de Icoaraci, distrito industrial de Belém, no Pará. Ali se produzem cerâmicas na tradição Marajoara e Tapajônica, uma cultura milenar, que vem de tribos extintas há muito tempo.

Os marajoaras viveram na região amazônica da ilha de Marajó desde o ano 1000 a.C. até o ano 1300 e, no seu auge, essa ocupação chegou a 100 mil habitantes. Não se sabem os  motivos de sua desaparição, mas estima-se que a produção ceramista remonte pelo menos a 1500 a.C. 

Entre as peças mais famosas estão as urnas funerárias, as igaçabas, destinadas aos ossos dos mortos e que são ricamente decoradas com figuras de animais, como cobras, jacaré, coruja, urubu_rei e escorpiões.

Já a cultura Tapajônica vem do Baixo Amazonas, e a produção ceramista remonta a 6500 a.C., conforme registros encontrados na região de Santarem, às margens do rio Ituqui. Uma das organizações sociais mais complexas é a dos índios Tapajó que habitaram a região entre o sec X e XVII.

Em Icoaraci, os artesãos locais trabalham divulgando esses saberes e colaborando para sua preservação. Um dos mais conhecidos, o seu Anísio, conta que faz cursos de atualização no Museu Goeldi e muitos deles têm clientes no exterior, apesar da falta de infraestrutura e apoio do Estado.

Em condições absurdamente precárias, tudo é feito nesses galpões, dos instrumentos de trabalho aos fornos, com uma capacidade de reinvenção e apropriação inacreditável. De uma caneta Bic e um grampo, nasce uma espátula. De um lápis e um pedaço de madeira, nasce um compasso.

O  resultado, são peças deslumbrantes, que nos colocam diante de uma outra história da arte e uma outra compreensão do design.

O zoomorfismo dominante das peças, os padrões geométricos, que compõem mosaicos e desenhos que beiram as ilusões de ótica, totalmente distintos das tradições que vem do olhar organizado pelas matrizes renascentistas, as formas fálicas e o erotismo presente em uma infinidade de utensílios e divindades, muito distante dos cânones que nos vêm da arte europeia com suas madonas lânguidas e anjos assexuados.

Tudo isso introduz um repertório que deveríamos aprender nas escolas… desde o ensino fundamental às mais especializadas como as universidades.

Não se trata de uma visão restauradora, que tanto já serviu às piores diretrizes autoritárias e nacionalistas, de busca e valorização de nossas supostas origens. Mas de uma outra vertente da história da arte, que alargue o espectro cultural, para além das matrizes europeias, sem desprezá-las, porém com capacidade de absorver um legado estético múltiplo, plural e que não abstraia aquilo que nos pertence culturalmente.

Transcrição da coluna Ouvir Imagens, de Giselle Beiguelman, veiculada toda segunda-feira, às 8:00, pela Rádio USP (93,7).

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