O corpo é um campo de batalha. Último reduto da propriedade inalienável do homem, o corpo é agora alvo de disputas biotecnológicas que levam a escala da computação para o nível molecular do indivíduo.

Em Stranger Visions (2012), a artista Heather Dewey-Hagborg faz esculturas baseadas em perfis genéticos rastreados em material coletado nas ruas

Esqueça a época em que você tinha medo de ter seu CPF, seu cartão de crédito, seus dados pessoais rastreados, haqueados ou clonados, simplesmente por tê-los compartilhado de alguma forma pela internet. Anote aí: você ainda vai ter saudade do tempo em que invasão de privacidade significava manipular informações relacionadas a você. Elas agora vêm de você, do seu corpo, e são codificadas computacionalmente para ser combinadas a outras que permitem maior precisão de controle e vigilância.

A leitura de íris, por exemplo, mapeia anéis e pontos no globo ocular. A representação matemática dessa leitura é arquivada em um banco de dados e permite a identificação do indivíduo em segundos e cruzar as informações com outras. Como se sabe, os olhos não mentem. Contudo, o que nem sempre se sabe é que esse tipo de análise biométrica é frequentemente associada a uma série de aplicações comerciais e procedimentos que vão muito além da segurança e da saúde pública. Sistemas ópticos de escaneamento podem revelar, instantaneamente, o consumo de drogas, álcool, gravidez e doenças como o diabetes em um clique, dispensando procedimentos considerados invasivos. Mas podem estar, e cada vez mais estão, associados a aplicações comerciais, como o monitoramento de funcionários no trabalho e transações bancárias.

Patenteados e monopolizados por empresas, os algoritmos relacionados a esse tipo de tecnologia convertem-se em um imbróglio entre poder público, poder corporativo e soberania do indivíduo sobre seu corpo. A obra da artista norte-americana, Barbara Kruger, de quem emprestamos o título destas páginas, ganha uma súbita atualidade. Esquartejado em inumeráveis algoritmos proprietários, o corpo, último reduto da propriedade inalienável do homem, é agora o grande filão em disputa de um novo território biopolítico.

Novas biopolíticas

Termo caro ao pensamento do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), a biopolítica é um sistema de poder relacionado à emergência da economia capitalista. No contexto do aumento de produção sempre crescente em meados do século 19, aparece a necessidade de controle e monitoramento da população, por meio de dados estatísticos de nascimento, morte, migração e estratégias de normatização de práticas sexuais e de trabalho, como sexo para fins reprodutivos, produção em linha e turnos, entre outros. Essas tecnologias sofisticaram-se muito desde as últimas décadas do século 20. “Os parâmetros, hoje, não só permitem identificar esse indivíduo e compor uma base de dados, como também possibilitam verificar essa identidade e traçar um perfil histórico das ações do mesmo. Em vez de termos um arquivo físico com medidas cranianas e retratos falados em papel, agora lidamos com uma base de dados digital que compara em tempo real informações colhidas por webcâmeras instaladas no espaço urbano com as informações fisiológicas também armazenadas em um banco de dados”, diz a pesquisadora brasileira Fernanda Duarte, doutoranda da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, e dedicada ao estudo das biotecnologias contemporâneas.

A pesquisadora alerta, ainda, que é preciso levar em conta dois aspectos fundamentais do desenvolvimento biotecnológico, no que diz respeito ao monitoramento. Por um lado, é importante lembrar que, além da biometria propriamente dita, outros métodos de monitoramento do corpo, como microchips, RFIDs (etiquetas de radiofrequência) implantáveis, nanorrobôs e proteínas biossintéticas que coletam dados sobre a fisiologia molecular, são campos de investigação cada vez mais promissores. Por outro, que diversas formas de computação e câmeras vestíveis, como o Google Glass, indicam que estamos nos candidatando a formas de vigilância consensuais e laterais, que implicam compartilhamento de dados associados a gestos e históricos pessoais, sobre os quais não temos controle ou consciência alguma.

Monitoramento por biossensores

Ainda que em grande parte em estágio experimental, ou restritos ao uso militar e em centros avançados de pesquisa medicinal, vários dispositivos biotecnológicos estão disponíveis para o público e conectados em rede. Prova disso é a popularidade de aplicativos para iPhone e afins relacionados à saúde. Um deles, chamado MIKAT, por exemplo, permite, com o uso de um biossensor, que o paciente monitore o nível de ansiedade para evitar que ele evolua para uma crise de pânico. Com o uso de sensores na pele e de controle do batimento cardíaco, o aplicativo reporta ao paciente informações sobre seu estado emocional e disponibiliza exercícios e técnicas clínicas criadas com base em terapia cognitiva comportamental. Caso o monitoramento fisiológico indique a ocorrência de uma crise de pânico, os dados são automaticamente enviados para o médico responsável, que então pode tomar as ações necessárias para o cuidado do paciente. “A inserção da computação no corpo humano não só fornece informações mais precisas sobre a performance do corpo, mas também sobre a localização daquele corpo no espaço físico. Você pode optar por não compartilhar a sua localização quando acessa um website ou pode desligar o celular se não quiser ser incomodado, mas não pode desligar o seu corpo. Caso a computação pervasiva chegue em um nível de intimidade com o corpo humano, no qual haja uma contaminação e corpos sejam ‘naturalmente’ haqueados, o compartilhamento de dados fisiológicos será inevitável”, comenta Duarte.

Esse prognóstico, no momento em que o mundo toma conhecimento do Prism, o sistema de vigilância eletrônica norte-americano, e de como ele é retroalimentado pelos dados armazenados em serviços populares como o Google e o Facebook, faz pensar que informações tão íntimas e particulares também podem um dia “vazar” de instâncias corporativas a governamentais, e vice-versa. E isso deve ser suficiente para preocupar o mais analisado dos seres sobre a face da Terra. Para tranquilizar ou descabelar de vez, é importante deixar claro que esses sistemas biotecnológicos são sofisticados, mas não perfeitos. Especialmente porque podem falhar ao lidar com a alteridade social.

A artista e pesquisadora colombiana radicada nos EUA Micha Cardenas, que é transgênero, comentou em uma conferência recente no Canadá que o sistema de escaneamento tridimensional dos corpos nos aeroportos norte-americanos deixava pessoas como ela em uma situação de total vulnerabilidade. O sistema, que inclui o agente de segurança responsável pelo controle das imagens, simplesmente trava. Não reconhece aquele corpo fora do padrão e direciona a pessoa automaticamente para uma revista pessoal. É no mínimo paradoxal, como, aponta Duarte, pensar que esse corpo, que é inserido em rede por um dispositivo biotecnológico, seja pervasivo em um limite tão extremo que, ao fazer essa conexão e identificar a aparência do corpo biológico, não seja capaz de revelar sua condição ubíqua, irredutível a modelos absolutos do que seja masculino ou feminino.

Definitivamente, para além de todas as conquistas que ainda estão por vir, na área da saúde e em outros campos, a era da vigilância biotecnológica coloca em pauta a gestação de novas políticas de controle e mobilidade. Elas embaralham, sob parâmetros inéditos, os limites entre público e privado, corporativo e governamental, máquinas e homens. E essa era está apenas começando.

Artigo publicado originalmente em seLecT, 13, ago/set. 2013, p. 52-55