A covid-19 transformou a cultura urbana, introduzindo elementos inéditos no cotidiano das cidades. A imagem da multidão, sempre associada à emergência e à vida das metrópoles, foi substituída pela das ruas vazias. O repovoamento paulatino do espaço público vem acompanhado do ressurgimento de seus habitantes de máscara. Acompanha esse quadro de “novo normal” a multiplicação das câmeras térmicas e a proliferação dos termômetros de infravermelho na entrada de qualquer lugar.

A paranoia é o horizonte estético pandêmico, e nada mais condizente com isso do que um termômetro em forma de arma. Inevitável pensar no que diria sobre esse tema o filósofo e urbanista Paul Virilio (1932-2018), que tantas vezes nos alertou para as dimensões políticas da automação da percepção e da industrialização da visão. Essa automação diz respeito à emergência de uma visão artificial, à delegação a máquinas de um olhar que não temos. Já a industrialização remete ao mercado da percepção sintética, fartamente instrumentalizada pelas formas de vigilância contemporâneas.

Um dos pilares desses sistemas de vigilância é o sensoriamento remoto, uma forma de monitorar e extrair dados sem contato físico com o objeto. Tecnicamente, os primeiros voos militares de balão, que eram realizados desde o fim do século 18, antes da invenção da fotografia, podem ser considerados a origem desse procedimento, numa arqueologia de suas práticas. E, muito embora a fotografia aérea tenha sido um dos marcos da Primeira Guerra Mundial, foi apenas no âmbito da corrida espacial e da Guerra Fria entre os EUA e a URSS que aquilo que entendemos por sensoriamento remoto se consolidou.

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Tudo isso é feito a partir de imagens da fisiologia do indivíduo, vistas por olhos totalmente maquínicos, que escaneiam o corpo e o reconstituem a partir da tradução de inputs eletromagnéticos em pixels que, ao final, em segundos, compõem um retrato “em rosa-púrpura e azulão” do sujeito. Um retrato só pode ser validado em um banco de dados, abrigado em uma nuvem computacional e submetido a alguma inteligência artificial que buscará padrões para eventualmente contribuir para a cura da covid-19. Mas que também podem vir a ser utilizados para outras finalidades. Não sabemos.

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Na naturalização dos revólveres travestidos de termômetros e nas câmeras que recolhem a assinatura espectral dos nossos corpos, está contido, portanto, muito mais que a leitura da temperatura. Tais ferramentas trazem à tona, ainda que de forma cifrada por uma ciência militarizada, as pautas de uma óptica algorítmica que é preciso aprender a ver. Porque ela já nos enxerga.

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