As cidades contemporâneas foram expandidas pelas tecnologias digitais. Elas permitiram a ocupação de fachadas com telas e acesso, via aplicativos, a informações que vão do fluxo do trânsito ao mapeamento de remoções decorrentes de obras públicas. Se, ao longo dos anos 1990, os especialistas discutiam como apropriar-se das redes para tornar a cidade mais interativa, hoje, com a capilarização da tecnologia, a aposta é em como utilizá-las para interferir no cotidiano das cidades.

A discussão sobre “cidades inteligentes” cede, assim, espaço para a de cidadania, reinventando as formas de ocupar as ruas e as próprias noções de política urbana. Não se trata mais de apenas planejar e regrar o espaço coletivo, mas, sim, de como mobilizar para que essas regras sejam fluidas o suficiente para constituir e reconstituir o uso comum, conforme as necessidades do momento. Um exemplo básico: como fazer com que os carros parem de fato no farol vermelho e os pedestres atravessem apenas na faixa de segurança? E uma questão mais complexa: como migrar da ideia de uma cidadania digital – que se esgota no uso de aplicativos – para as práticas de uma cidadania em rede, pautada pela ação colaborativa entre todos?

https://youtu.be/SB_0vRnkeOk

Projeto do carro Smart realizado em Lisboa permitia que o público dançasse dentro de uma cabine e transmitisse suas imagens para os semáforos em tempo real

Ruas dançantes

Atravessar as ruas nos centros das grandes cidades converteu-se em uma espécie de batalha campal entre homens e máquinas. Isso vale para o trânsito caótico das metrópoles brasileiras, mas vale também para várias capitais europeias. Os carros, muitas vezes, não respeitam as faixas, mas é inegável que, na pressa, muita gente se arrisca correndo entre os carros. Com base nisso, a linha de automóveis Smart patrocinou um projeto que colocou os pedestres na função de protagonistas do trânsito. Instalou réplicas dos sinais de tráfego em escala humana e convidou o público a dançar lá dentro. Suas imagens foram silhuetadas na forma de bonequinhos e apareceram, em tempo real, dançando no sinal, no lugar dos tradicionais – e aborrecidos – sinais de interdição.

O resultado, depois de um teste de um mês em Lisboa, no fim do ano passado, foi um aumento de 81% no número de pessoas que paravam no sinal vermelho. Não há dúvida que a receita de sucesso desse projeto passa por dois pilares do design de informação: o investimento na experiência do usuário (UX, User Experience), como experiência participativa e não meramente reativa a cliques, e a exploração no limite máximo do potencial das cidades em rede. Afinal, é o fato de esses equipamentos urbanos funcionarem em rede o que permite a sua interligação em sistemas que podem ser apropriados de outras formas pela população.

Sistemas parasitas

Utilizar a base tecnológica implantada para criar novas ecologias sociomidiáticas é o que está por trás da ideia de parasitismo, no glossário do ativismo contemporâneo. Não se trata de haquear pura e simplesmente um sistema para uma causa própria, mas infiltrar-se para criar plataformas comuns. Em uma frase, estamos falando aqui da migração da apologia do individualismo DIY (Do It Yourself, Faça Você Mesmo) para o coletivista DIWO (Do It With the Others, Faça com os Outros).

Na prática, isso aparece em projetos como os Bueiros Conectados do jovem designer paulista Andrei Speridião. Eles funcionam a partir da combinação entre um equipamento – desenvolvido por Speridião –, que é implantado nos bueiros e se alimenta das informações que os sensores dos bueiros captam e transmitem (como nível de água). Esse equipamento-parasita é a fonte de informações de um aplicativo para celular. Qualquer pessoa poderia acessar, assim, os dados gerados por um bueiro e, com isso, participar da gestão da cidade, identificando sua integridade física e o nível de sua capacidade de uso. O aplicativo permite não só que essas informações sejam agregadas a um mapa coletivo, mas também imediatamente transmitidas para o órgão ou instituição onde está localizado e à subprefeitura relacionada.

Premiado no IDEABrasil 2014, um prêmio internacional devotado à excelência em design, Bueiros Conectados aposta no potencial da conexão entre os objetos e os cidadãos, privilegiando a mobilização coletiva para a tomada de decisões preventivas. O projeto aguarda parceiros para ser implementado.

Giselle Beiguelman

Artigo publicado originalmente na revista seLecT, 23, abr./maio 2014.

Comments (1)
  1. Gabriel Cabral

    maio 21, 2015 at 15:52

    Cara Giselle,

    atualmente estudo releituras do paternalismo jurídico (faço mestrado em Direito), dando especial atenção à ideia recentemente articulada por Cass Sustein da possibilidade de um paternalismo libertário, que não torna opções indesejadas impossíveis, mas as torna mais difíceis por meio da manipulação, a mais imperceptível possível, das situações da “arquitetura” da decisão. O exemplo da intervenção sobre um semáforo em Lisboa parece-me ótimo. Por conta disto, fiquei muito interessado em saber mais sobre os conceitos de cidade interativa e participativa. Como se trata de um assunto completamente novo para mim, tenho tido dificuldades de achar bibliografia sobre o tema por mim mesmo. Você poderia indicar alguma coisa?

    Obg.

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