O movimento Dia de Sair do Facebook e a guerra de vídeos no YouTube em torno do ataque israelense à Frota da Liberdade mostram os potenciais antagônicos da web 2.0

Giselle Beiguelman (@gbeiguelman)

Redes sociais e de compartilhamento de conteúdo tornaram-se centrais no nosso cotidiano. O protesto contra o Facebook (Quit Facebook Day/Dia de Sair do Facebook) e a guerra de vídeos no YouTube em torno do confronto da Frota da Liberdade são dois acontecimentos recentes sintomáticos desse processo.

De natureza política totalmente distinta (o primeiro contra a política de privacidade de uma empresa e o segundo contra e a favor da ação de Israel na Faixa de Gaza) apontam para as ambivalências da Web 2.0: seu potencial de domesticação e de tensionamento da esfera pública.

O Dia de Sair do Facebook chamou a atenção para a falta de clareza do uso que esta rede social faz dos dados dos seus usuários e sua abertura aos anunciantes do serviço.

O protesto, realizado dia 31 de maio, era contra a fragilidade da política de privacidade do Facebook e seus vínculos com seu modelo de negócios, baseado em publicidade direcionada.

Esse sistema, que também é utilizado pelo Google e outros serviços, permite que as informações associadas aos perfis de seus usuários sejam vinculadas a anúncios.

No caso do Facebook, que é o site mais acessado do mundo segundo dados do Ad Planner, o combustível dessa máquina é formado pelos inúmeros aplicativos e plug-ins sociais que são oferecidos aos membros.

Eles estimulam a publicação de dados relacionados aos gostos e comportamentos e permitem o mapeamento da distribuição dos anúncios das empresas que compram espaço publicitário no Facebook.

Corpos informacionais

Num mundo mediado por bancos de dados de toda sorte –de programas de busca a redes sociais, passando pelas “Amazons” da vida e as catracas da empresa e da escola–, somos uma espécie de plataforma que disponibiliza informações e hábitos conforme construímos nossas identidades públicas nos diversos serviços relacionados ao nosso consumo, lazer e trabalho.

Em síntese, nos transformamos em corpos informacionais. Isso tende a se acirrar, conforme se popularizam os métodos de investigação genética e sua distribuição pela internet.

Afinal, foi isso o que o Projeto Genoma fez: converteu nossa compreensão do corpo, antes entendido como um arranjo de carne, ossos e sangue, em um mapa de informações sequenciadas em computador.

A artista e professora Victoria Vesna, da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) chama atenção para a dimensão política do assunto, quando afirma, no livro “Database Aesthetics”, que a corrida pelo patenteamento de genes nos coloca na encruzilhada de pensar que a vida pode estar convertendo numa questão corporativa.

No limite, a situação me faz pensar que um dia poderemos subitamente encontrar parte de nosso código genético no Google ou haquear o DNA de alguém via um site de compartilhamento baseado em Torrents.

Mas, enquanto isso não acontece, é importante deixar claro que já somos corpos informacionais que desovam e recebem dados pela internet e que a internet que importa é, cada vez mais, a que transita pelos dispositivos móveis, combinada a serviços relacionados a mídias locativas.

É essa combinatória que explica a animação dos publicitários com a cultura da mobilidade. A partir de programas instalados no aparelho não apenas é possível saber onde o portador do dispositivo está, mas ter essa informação compartilhada e combinada a bancos de dados e apontando para o que está em sua vizinhança.

Tudo isso mediado pelos encantos das redes sociais, onde somos mobilizados o tempo todo a mensurar nossa popularidade, competindo por números de amigos. Mais desconcertante do que essa abordagem quantitativa da sociabilidade e das relações afetivas, é pensar em como essas identidades se constroem.

Com perfis baseados nos vídeos que assistimos, músicas que gostamos, lugares que frequentamos e coisas bacanas e chatas que acontecem no cotidiano, passamos a ter nossa personalidade ancorada naquilo que consumimos.

O resultado desse processo é que as identidades pessoais passam a ser identidades corporativas, como mostraram, com abordagens distintas, Douglas Roushkoff, em “Life. Inc”, e Richard Sennett, em “A Corrosão do Caráter”.

Comunicação e mudança cultural

É difícil negar que esse seja um dos desdobramentos da vida mediada por redes sociais. Mas o embate de versões e documentários que acompanharam o confronto entre a marinha israelense e os ativistas da Frota da Liberdade e que resultou em nove mortos mostram também que as redes são o espaço privilegiado do debate político contemporâneo.

Como comentou Brian Stelter, no “New York Times”, quando os comandos israelenses atacaram a frota “os dois lados estavam bem armados –com câmeras de vídeo”.

Os ativistas enviaram imagens transmitidas do navio Mavi Marmara, via Livestream (um sistema de transmissão de vídeo ao vivo para a internet). Da mesma forma, o exército israelense postou em seu canal no YouTube vários vídeos com sua documentação.

Desnecessário dizer que as imagens são contraditórias: as dos ativistas mostram que foram atacados pela marinha israelense. As do exército de Israel, que este agiu em legítima defesa.

Os usos políticos de manipulação de imagem não são recentes, nem exclusivos da internet. Basta lembrar as famosas fotos da Revolução Russa, nas quais Trotsky aparecia e das quais foi deletado por ordem de Stalin. Apesar da importância desse tema, a manipulação de imagens foge da discussão que se faz aqui.

O que importa, nesse artigo, é chamar a atenção para esses recursos, como Twitter, Facebook e Youtube, que, ao mesmo tempo em que abrem possibilidades inéditas de fomento do consumo e controle, se tornam também dispositivos de uso crítico e criativo das mídias existentes.

Por isso, apontam para diferentes concepções e tendências políticas da ecologia midiática atual. A investigação das zonas de tensão que emergem nos confrontos e nas acomodações dessas tendências permite-nos entender seus procedimentos, tornando suas dinâmicas menos opacas.

Essas tensões são constitutivas das possibilidades de mudança cultural, mudanças essas que são operacionalizadas por movimentos sociais, ao propor e desencadear descontinuidades com as relações de poder que estão embutidas em instituições de vários tipos.

Movimentos sociais não são, contudo, meros conjuntos de indivíduos. São grupos que atuam no espaço público, sendo que esse espaço público hoje, na sociedade em rede, como mostrou Castells, é o espaço das redes de comunicação.

Ocupá-las, relativizando suas funcionalidades meramente publicitárias, é hoje, por isso, questão política fundamental.

link-se

Top 1000 sites – DoubleClick Ad Planner – http://www.google.com/adplanner/static/top1000/

Quit Facebook Day – http://www.quitfacebookday.com/

Brian Stelter – “New York Times”, 01/06/2010. “Videos Carry On the Fight Over Sea Raid” http://www.nytimes.com/2010/06/02/world/middleeast/02media.html?scp=8&sq=brian%20stelter&st=cse

Victoria Vesna (org.) – “Database Aesthetics: Art in the Age of Information Overflow” -http://books.google.com/books?id=njd5O70FHwwC&lpg=PP1&dq=database%20aesthetics%20vesna&pg=PP1#v=onepage&q&f=false

Douglas Rushkoff – “Life.Inc’’ – http://rushkoff.com/books/life-incorporated/

Richard Sennett – “A Corrosão do Caráter: Consequências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo” – http://books.google.com/books?id=6SFiaCJLJJoC&lpg=PP1&dq=sennett%20corros%C3%A3o%20car%C3%A1ter&pg=PP1#v=onepage&q&f=false

Imagens da Revolução Russa (com e sem Trotsky) – http://www.tc.umn.edu/~hick0088/classes/csci_2101/false.html

Manuel Castells – “Communication Power” – http://books.google.com/books?id=5tEu8q-Aqn8C&lpg=PP1&dq=manuel%20castells%20communication%20power&pg=PP1#v=onepage&q&f=false

Publicado em 7/6/2010

Comments (6)
  1. Fabio Maza

    junho 7, 2010 at 21:57

    Cara Giselle! Li o seu artigo na uol e gostei muito. Acho que vc aborda questões que contribuem para entender melhor a “realidade” da rede. Só não posso concordar com a afirmação categória que o espaço público é o espaço as redes de comunicação e ponto. Não tenho dúvida que isso é verdade em parte. Não vivemos como na Ágora grega, mas acredito ser a rede mais um componente de um espaço público que se expande cada vez mais. Também não discordo que a ação política passe pela rede ou redes,mas acredito que o “velho” espaço público das praças são ainda, “graças a Deus”, lugar fundamental da luta política e social.Saudaçoes. Fábio Maza.

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  5. Renato Dias Baptista

    junho 8, 2010 at 15:58

    Ótima análise de uma face complexa!

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